sábado, 22 de maio de 2010

Um Quarto, Duas Salas



Repousava sobre o sofá corpo curvo e deformado. Aparentemente inanimado, somente o movimento do globo dos olhos. Com quem sonha; tosto e introspectivo, refletindo. Os pensamentos como de cinema, efusivos, confusos e incrédulos. Nenhum prazer embora o corpo estivesse absurdamente endorfinado, nem medo tão pouco desespero. Sem palavra, mudo, custava também manter a visão, as imagens em seqüência, fugidas e incertas, a vista embaçava fatigante. O som era dolorido e o tato ardia.  As paredes, escurecendo, mantinham a massa de ar serena, brutalmente negra.  Aspirava o pouco ar que ainda conseguia, como a inspirar a própria noite, perfume suspenso no ar não deixava o corpo faminto por vida esquecer o que acontecera.
            As gotículas impregnavam os estofados. Estofados, miseráveis e infladas testemunhas. O carpete rejeitava o fluido viscoso putrefato, de olhos nele, a Amada dilatava a pupila que pendia pra baixo puramente por esforço da gravidade. Assim como a córnea despencava, tudo em volta baixava o ânimo em atitude respeitosa.  As paredes cúbicas, silenciadas e imóveis. A mesa de madeira nada refinada agachou-se como se não pudesse acreditar. Estantes, embebidas de melancolia, embutiram-se.   A cama dormiu e as lâmpadas agonizaram na cortante angústia de uma efervescência luminosa.  Os elétricos emudecidos de pavor, não emitiram ruídos enquanto metais, maçanetas e panelas cruelmente gelaram. Mas o relógio, o relógio não ousou se omitir, deu um grito de desespero, despertava. Despertou.
            O chão viu-se teto. A faísca sonora viajava preguiçosamente, emboscada pela imobilidade da atmosfera. Finalmente chegou aos ouvidos da Amada, acordando-a embora não dormisse. Perdida em si mesma nada percebe, nem cheiro de pólvora, nem o sinal da revolta mecânica, o compacto de metal escorreu de sua mão até solo sem ruído.  Apenas percebe a criança metida entre as pernas, esfregando o rosto no jeans índigo. Vai até o quarto, agasalha o menino numa manta vermelha e se debruça sobre ele como a consolá-lo, como se pudesse.  Os seres antes suspensos voltam a seus respectivos pesos. O afundar das costelas do Amado suscitou um suspiro único: “Deus”. A mulher não sentiu, apenas abraçava o filho e como saber se poderia presenciar o momento, o último momento que por mais distante que esteja um dia chega, e depois dele só há a distância, e a do pior tipo, a distância infinita? Irrevogável? Irremediável? Não se sabe.
            Assim, sem resposta, quando não se esperava, solenemente como numa sala de museu, objetos, móveis e elétricos fizeram de conta que não mais podiam olhar a fotográfica descrição de um lar e cemitério. Duas salas, um quarto, acessórios e três cadáveres, um chorava e outro começava a ouvir as paredes.­